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Aliados brancos na luta antirracista

*Cristina Fernandes, especialista em educação e fundadora do podcast Ideias Negras: convidada especial

Dias desses revi no Netflix o filme “Django Livre” de Quentin Tarantino, o que acendeu a faísca para escrever este texto sobre um tema que há tempos vinha matutando – o papel dos aliados brancos na luta antirracista, particularmente no mundo do trabalho e no ambiente corporativo.

No filme, lançado em 2012, o ex-escravizado Django, personagem de Jamie Foxx, faz uma aliança com o caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz, vivido por Christopher Waltz, com o objetivo de resgatar sua amada Brunhilde, na pele da linda Kerry Washington, que foi escravizada em uma fazenda de algodão em Mississippi, do cruel Calvin Candie (Leonardo DiCaprio).

À princípio, a ajuda de Dr. Schultz não é nada desinteressada e altruísta, é em troca do conhecimento de Django sobre seus próximos alvos. No entanto, no decorrer do filme, Dr. Schultz acaba se engajando, com mente e coração, na batalha de Django, e em sua causa, transformando a parceria de negócios em uma sólida e cotidiana amizade.

Mas o que “Django Livre” tem a ver com negras e negros no mercado de trabalho?

A maneira como Dr. Schultz ajuda Django para que ele alcance seu objetivo me faz pensar no apoio que executivos brancos, homens e mulheres, em posição de liderança, aliados na luta antirracista, podem direcionar em prol dos profissionais negros nos ambientes de trabalho.

Dr. Schultz não somente ensina Django a atirar, despertando seu talento nato de exímio atirador, como também, com seu humor irônico e sabedoria, inspira Django, um sujeito rápido e inteligente, a dar vazão à sua astúcia, a pensar estrategicamente, elaborar e implementar um detalhado plano de ação (e vingança).

Além disso, Dr. Schultz ajuda Django a decifrar os códigos e a navegar pelo mundo da cultura hegemônica branca. E por fim, por meio de sua rede de contatos, Dr. Schultz promove e facilita o encontro entre Django e sua amada, passo crucial para seu objetivo final.

O papel dos aliados brancos na luta antirracista

Há muita reflexão e conhecimento produzido sobre o conceito e o papel de aliados (ally-ship, em inglês) nas lutas por justiça social, inclusive com muitas críticas, principalmente por parte da militância antirracista.

Não cabe aqui aprofundar na teoria, mas, grosso modo, as críticas giram em torno da dualidade “apoiados-apoiadores” e, consequentemente, sobre os papeis de agentes/beneficiários da ação, relegando o negro ao papel passivo de “assistido/apoiado”.

Embora exista uma corrente que defende um “ally-ship” em que os brancos, ao reconhecerem seus privilégios, em vez de ocuparem ‘lugares de fala’ historicamente construídos em uma sociedade hegemonicamente branca e patriarcal, assumam “lugares de escuta” dos historicamente excluídos. Ainda assim, a crítica se baseia ao fato que aqui, os aliados passivamente apoiam a luta dos ativistas negros, em vez de atuarem juntos para ativamente enfrentarem o racismo.

Portanto, ainda que não ignore as críticas, aposto no papel dos aliados na luta antirracista no Brasil, particularmente, no mundo do trabalho e ambiente corporativo, muito inspirada pelo pensamento da filósofa Sueli Carneiro. No documentário “A última abolição”, produzido pela Globo News em 2018 (está no YouTube), Sueli Carneiro, parafraseando o sociólogo americano, Charles Mills diz “toda pessoa branca, querendo ou não, é beneficiária do racismo, independentemente de sua vontade. Mas nem toda pessoa branca é signatária do contrato racial que o racismo impõe. Assim, está aberta a possibilidade de alianças em prol da construção de outro tipo de sociedade, em que outro tipo de contrato seja possível. Em que possamos caber todos, em que possamos desfrutar igualitariamente das oportunidades coletivamente gestadas. Eu acredito e convoco os brancos não signatários a se engajarem neste projeto.”

Enfim, qual o papel dos aliados na luta antirracista? Como diz a intelectual e ativista americana Angela Davis, numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Portanto, é fundamental avançar para além da atitude individual, entendendo o racismo como uma questão complexa, sistêmica e estrutural que perpassa todas as instituições da sociedade.

Aliados antirracistas no mundo corporativo e das organizações

A minha proposta aqui é focar no papel dos brancos aliados no dia a dia do ambiente corporativo. Para além da empatia, brancos em posições de poder e de tomada de decisão podem ativamente desafiar as estruturas do racismo.

Partindo do reconhecimento de seus privilégios de branquitude (outro conceito fundamental a ser entendido) é preciso agir lançando mão dos meios e recursos que dispõem, muitas vezes simbólicos, como capital social e domínio da epistemologia hegemônica, para contratar e oferecer mentoria aos profissionais negros e negras, facilitando seu acesso e navegação no ambiente corporativo. E, sobretudo, estimulando sua ascensão profissional e ocupação de posições estratégicas.

Eventualmente até dando um passo atrás, renunciando aos egos, trocando lugar de fala por lugar de escuta e deixando o holofote iluminar os que poucas vezes ocupam os lugares de fala. Apesar de brilhante, Dr. Schultz é coadjuvante no filme. Sua principal função é pavimentar o caminho para o protagonismo de Django. Ele estimula o talento, a potência e a personalidade charmosamente cínica, sangue-frio e calculista de Django, crucial para a sobrevivência e triunfo na sociedade escravocrata dos EUA antes da Guerra Civil.

Assim, a partir do reconhecimento de seus privilégios, brancos aliados podem agir como antirracistas com os recursos que têm – seja capital social, conhecimento ou poder de decisão -, identificando interesses em comum com os negros, construindo laços de solidariedade e apoio mútuo, em favor de um ambiente corporativo mais diverso, uma economia mais dinâmica e uma sociedade mais justa. Enfim, ir ao encontro de um lugar comum dentro das diferenças para podermos juntos transformar o mundo em um lugar melhor para todos.

Apesar de algumas críticas tanto ao “Django Livre” quanto ao conceito de “ally-ship”, gosto de ambos os argumentos – do filme e da teoria. O Dr. Schultz é um dos meus aliados preferidos no cinema.

E você? É uma aliado nosso na luta antirracista?


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